O uso excessivo de telas, especialmente smartphones, amplamente acessado por crianças e adolescentes é um problema de grande urgência e tem ocupado o centro dos debates sobre educação e saúde mental pelo mundo. Ao menos um em cada quatro países no planeta já adotou medidas para proibir ou restringir o uso de celulares no ambiente escolar. Em meio a esse contexto, o Instituto Alana defende a proposta de restrição do celular pessoal dos estudantes na escola, com o objetivo de repactuar a presença da tecnologia na escola a partir de avaliações sinceras sobre os benefícios e danos, priorizando a reflexão sobre a intencionalidade pedagógica dos usos.
Segundo dados divulgados na pesquisa TIC Kids Brasil Online 2024, divulgada esta semana, o celular é o principal dispositivo de acesso à Internet para 98% dos usuários entre 9 e 17 anos. O uso de celulares aumenta conforme a idade, mas o percentual de crianças com celulares já chamam a atenção pela precocidade: 67% das crianças com idades entre 9 e 10 anos já possuem celulares; entre 11 e 12 anos, o número sobe para 79%; entre 13 e 14 anos, 77% afirmam ter celulares e, entre 15 e 17 anos, 93% relatam usar o aparelho.
“É muito importante ressaltar que não defendemos retirar o digital do currículo nem da sala de aula. É possível fazer a discussão sobre o mundo digital, já prevista nos currículos, usando preferencialmente outros equipamentos, estratégias e tecnologias, que não dependam exclusivamente do celular pessoal dos estudantes. Isso ajuda a escapar das plataformas com design manipulativo como as redes sociais que não são feitas para favorecer a aprendizagem e ainda dificultam muito o exercício de autocontrole nos usos”, afirma Rodrigo Nejm, líder do Eixo Digital e especialista em Educação Digital do Instituto Alana.
Nejm ainda diz que, ao restringir o celular pessoal dos alunos, estimula-se outras formas e linguagens para trabalhar a educação digital, com computadores de uso coletivo, laboratórios multimídia de inovação ou mesmo com atividades desplugadas que tragam a experiência digital dos estudantes para o centro e não seu aparelho.
“É preciso sempre se perguntar: qual tecnologia, com qual intencionalidade pedagógica, em quais momentos e estimulando quais habilidades digitais? Como sempre frisamos, é preciso proteger as crianças na internet, não da internet”, diz.
Nesse sentido, o Alana considera que restringir o celular pessoal na escola hoje é um freio de arrumação, uma medida necessária para refundar o pacto do uso de tecnologia na escola. É preciso que ele seja um ponto de partida, e não de chegada, para uma grande discussão coletiva que considere todos os envolvidos na construção de uma jornada de emancipação digital: crianças, famílias, escolas, governo, organizações e empresas.
Idades adequadas para uso de redes
O Instituto Alana divulgou recentemente o resultado de uma pesquisa, encomendada ao Datafolha, que buscou investigar a percepção da sociedade sobre o uso da internet por crianças e adolescentes. Foram questionados temas como a atuação das plataformas, o tempo gasto por crianças nas redes, o nível de conhecimento de pais e mães sobre formas de monitorar esses acessos, e como veem a atuação das empresas e do poder público quando se trata de manter crianças e adolescentes seguros no ambiente digital.
O posicionamento do Alana é reforçado por um dado significativo revelado pela pesquisa Datafolha: a população brasileira considera, em média, que o acesso às redes sociais deveria ocorrer a partir dos 15 anos. Cada vez mais movimentos mundo afora — como o Desconecta, no Brasil, alinhado com iniciativas semelhantes no Reino Unido e nos EUA — têm insistido nessa questão, propondo um grande acordo coletivo para que as crianças não tenham smartphones próprios até os 14 anos e acesse as redes sociais somente a partir dos 16 anos de idade.
O comportamento de uso de Internet, entre crianças e adolescentes de 11 a 17 anos, já carecem de atenção, segundo os números da TIC Kids Online. Segundo a pesquisa, 24% dos usuários dessa faixa etária tentaram reduzir o tempo na Internet, mas não conseguiram; 22% percebem que estão navegando na sem real interesse no conteúdo e outros 22% disseram que passam menos tempo com a família, amigos ou fazendo tarefas escolares por estarem online. Esse número aumenta para 30% entre adolescentes de 15 a 17 anos.
E em tempos de desinformação, proliferação e disseminação de conteúdos inadequados e nocivos e de alto teor mercadológico, incluindo os cassinos online, novos riscos se apresentam no ambiente digital, especialmente quando se constata que 50% dos usuários entre 11 e 17 anos concordam que o primeiro resultado de uma pesquisa na Internet é sempre a melhor fonte de informação, ainda conforme a TIC Kids Online.
Embora muitas vezes as famílias desejem adiar a entrada dos filhos no mundo digital, sua posição, bem como a das escolas, é de grande fragilidade frente ao grande poder de manipulação e captação das redes sociais e alguns jogos. Ações como a restrição do uso de celulares pessoais nas escolas, portanto, podem funcionar como um respiro para que se consiga estabelecer um diálogo e se possa redefinir o acordo da presença da tecnologia na vida de crianças e adolescentes – iniciando pela escola como espaço singular de convivência e de aprendizado para a vida em sociedade.
“Não se trata de ignorar potenciais oportunidades das tecnologias na educação, mas sim avaliar com cautela quais recursos efetivamente estão ajudando a consolidar a educação digital mais crítica e que permite converter as oportunidades digitais em benefícios tanto na sua vida acadêmica quanto na socialização e na formação cidadã. Que a restrição seja um ponto de partida para uma jornada de emancipação digital e que a conectividade na escola seja significativa, desenvolvendo habilidades críticas e criativas para além do uso passivo que ainda predomina na experiência no celular”, afirma Nejm.
O design manipulativo das redes e os desafios na proteção das crianças
“A pesquisa Datafolha indicou diversas percepções, como a demanda de pais e mães para que as empresas façam mais para proteger as crianças e os adolescentes, que não conseguem se defender sozinhos das violências e ameaças do ambiente digital. A maioria das pessoas considera que os jovens recebem muitos conteúdos inapropriados para sua idade, que é muito difícil conseguirem se defender e que muitos estão ‘’viciados’ no uso de celular e de redes sociais”, avalia Nejm.
Esses dados são corroborados pela pesquisa TIC Kids Online Brasil, quando 52% das crianças e adolescentes entre 11 e 17 anos relataram alguma dificuldade em ajustar as configurações de privacidade nas redes sociais, sendo que 44% dos usuários dessas faixas etárias relataram alguma dificuldade na hora de diferenciar conteúdo patrocinado e não patrocinado online, como em um vídeo ou em uma postagem em redes sociais. As plataformas digitais, aliás, são utilizadas por 83% dos usuários nessas faixas etárias, sendo que as três mais usadas são WhatsApp (69%), Instagram (63%) e TikTok (45%).
Nejm destaca que diversas pesquisas mostram que o uso de celular pelos jovens é majoritariamente em redes sociais e aplicativos de mensagens. “Isso reforça a nossa percepção de que existe um design manipulativo nas redes sociais, que capturam a atenção de crianças e adolescentes, dificultando muito o autocontrole. Esse é um problema que vem impactando profundamente esses jovens, dentro e fora do ambiente escolar, inclusive gerando reações violentas contra professores e familiares em casos de interrupção do uso.”
Entre os resultados mais expressivos do estudo estão o fato de que de que nove em cada dez brasileiros (85%) acreditam que as empresas não fazem o suficiente para proteger crianças e adolescentes e que oito em cada dez brasileiros (78%) acreditam que a lei brasileira protege menos as crianças e os adolescentes do que as de outros países.
Nesse cenário, se por um lado há verdadeira onipresença de celulares no dia a dia, por outro, muito pouco é feito para garantir a segurança e o bem-estar de crianças e adolescentes no ambiente digital. E isso tem impactado profundamente a vida desses jovens dentro e fora da escola, afetando múltiplos aspectos de seu desenvolvimento. O desafio passa pela formação dos educadores, disponibilidade de equipamentos apropriados e intervenções sistemáticas para um ambiente escolar pacífico ancorado em relações institucionais e interpessoais respeitosas. Tudo isso em um cenário de múltiplas carências na educação básica, de banalização da violência no cotidiano.
A pesquisa Datafolha revelou que três quartos da população (75%) acreditam que as crianças e os adolescentes passam muito tempo nas redes sociais, sendo que dois a cada três (65%) concordam integralmente com a afirmação. A concordância é maior entre pais com filhos de 0 a 6 anos (76%) e 7 a 10 anos (78%).
Este dado é extremamente significativo, já que a maior parcela de pais que consideram que seus filhos passam tempo demais em redes sociais é a daqueles com crianças entre 7 e 10 anos, o período definido como fim da primeira infância. É um momento fundamental na formação e na socialização das crianças, imediatamente anterior ao início da adolescência, em que as rotinas têm um declínio significativo de atividades lúdicas, brincadeiras ao ar livre, parques etc.
Sobre o uso da internet entre crianças e adolescentes no Brasil, a pesquisa TIC Kids mostra que 89% das crianças de 9 e 10 anos, e 88% das crianças de 11 e 12 anos, utilizam a Internet no país. Por isso, o Alana considera que é preciso refletir sobre as realidades e desafios específicos dessa faixa etária para repensar as estratégias de proteção, e a contenção de danos causados pelo uso excessivo de telas é um ponto de partida fundamental para essa transformação.